quarta-feira, 24 de março de 2010
Queda
Estou pedindo pra ser só medo. É que não me lembro
da última vez que caí, ao me desequilibrar por desconcentração e receio.
Das cicatrizes nos meus joelhos, lembro-me que apenas uma foi por
vontade. Aquela ladeira íngreme e comprida que, virando, dava num muro
cheio de quinquilharias, era atraente. Posso até ver a imagem que meu
cérebro conseguiu processar naqueles intensos segundos em que meus olhos
vidrados eram ressecados pelo vento causado pela aceleração da minha
bicicleta caloi. Eu, que nunca fui de travessuras, não era
gente com aquela máquina rosa-bebê nos pés, já que as mãos quase sempre
ficavam no ar. Parece até que tatuei a nossa parceria; não poderia
contar quantas emoções foram estampadas à fina ranhura no meu corpo. Eu
nem sei que fim levou minha caloi, mas o medo aliou-se a mim
depois da dita queda. Gabo-me de não ter chorado. Sequer voltei pra casa
com o rabinho entre as pernas, escondendo os ferimentos pra que não
passassem merthiolate. - E merthiolate não arde mais.
Uma pena, eu adorava ouvir minha madrinha dizendo "eu assopro, eu
assopro". Esses dias ela passou em mim o novo. Eu duvidei do poder de
cura, mais parecia água, e ela nem fez biquinho pra assoprar, fazendo
vento pra carregar a minha dor. - Acho que foi por o risco ter me
atraído, e eu tê-lo assumido e provocado, é que eu não me lembro do ente
medo. Engraçado que agora torça pra que tenha. Acostumei-me com um
poder premonitório esse tempo todo, agora eu só não queria acertar.
Ponho a culpa num medo. Invento-o. Porém, não tenho mais bicicleta e o
joelho já não serve pra lascar. Tenho uma rótula aqui dentro que sempre
se desloca quando mexo, e até se mexe sem que eu queira. Será que essa
eu posso arriscar? Se quem arrisca não petisca, estou me vendo comer poeira, com a cara no chão e o coração arranhado. Dá pra ver a carne viva.
Ora, nunca esteve morta. Mas, uma vez machucada, o que há de fazer
passar? Vai ser preciso muito ácido e atroz vendaval. Tudo bem, que
seja, então. Pra mim, tem que ser assim: tem que arder para curar!
Eu deveria ter confiado mais no meu "poder premonitório". Continua ardendo tudo aqui.