quinta-feira, 25 de março de 2010

C'etait ici

Quero
correr pra fora de casa e
brincar no jardim com as pintinhas negras
naqueles
couros alvos dos filhotes da
minha cadela dálmata. Quero
rotacionar em torno
de mim mesma e cair na grama
molhada, vendo os
pingos d'água caírem em
câmera lenta e sentindo-os espancar
minha
pele,
dissolvendo minha alma
naquele chão. Hei de me tornar
nutrientes
pra
mangueira que dança ao som do
vento
descompassado.
Passarinhos dão
rasantes pra
que eu veja seus
peitos
coloridos,
predominantemente
amarelos. Gritam; eu ouço

hora!". De quê? De
se
entregar. Quase
que
me sinto
carregada
pelos seres que
me rodeiam.
Tem
formiga no
meu
dedo
que
não
me morde. Deixo assim. Quero fazer
parte daqui
pra
sempre.
Quero
a cena do filme que essa noite
dormi sem
repetir.
Vejo o
brilho
de olhos
fechados em tudo. Tudo
parece estar em mim. Vou
explodir.
Não aguento em meu
peito esse
coração a contaminar
tudo. Por
todo meu corpo,
minhas hemácias
dançam, fico vermelha e
sorrio. Todo
o
meu ser se recorda
que já
senti
algo assim.
Cintila um
azul-celeste
na
minha imensidão
nublada,
vem sem
sol. Volta
chuva. Chora,
céu,
por
mim. Esconda-me
dos olhos
injustos,
não
quero
dividir essa sensação.
Sinto-me
louca. Maravilhoso ter
minha
própria razão. Fico
desconfiada.
Sumam
todos, eu não
quero
dividir.
Não
surjam,
deixem-me
aqui ou
deitem-se
comigo.
Mãe,
hoje, eu não vou
almoçar.
Engoli
esse ar,
essas
cores,
esse
sons, essas texturas, esse
tons.
Até a
revoada de
urubus se afastou,
lembrando-me que estou viva.
Sem
ninguém
aqui, estou repleta de
mim. Cai água
outra vez.
Tudo
em
01:53, a
última nota
no violino
e FIM.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Queda

Estou pedindo pra ser só medo. É que não me lembro da última vez que caí, ao me desequilibrar por desconcentração e receio. Das cicatrizes nos meus joelhos, lembro-me que apenas uma foi por vontade. Aquela ladeira íngreme e comprida que, virando, dava num muro cheio de quinquilharias, era atraente. Posso até ver a imagem que meu cérebro conseguiu processar naqueles intensos segundos em que meus olhos vidrados eram ressecados pelo vento causado pela aceleração da minha bicicleta caloi. Eu, que nunca fui de travessuras, não era gente com aquela máquina rosa-bebê nos pés, já que as mãos quase sempre ficavam no ar. Parece até que tatuei a nossa parceria; não poderia contar quantas emoções foram estampadas à fina ranhura no meu corpo. Eu nem sei que fim levou minha caloi, mas o medo aliou-se a mim depois da dita queda. Gabo-me de não ter chorado. Sequer voltei pra casa com o rabinho entre as pernas, escondendo os ferimentos pra que não passassem merthiolate. - E merthiolate não arde mais. Uma pena, eu adorava ouvir minha madrinha dizendo "eu assopro, eu assopro". Esses dias ela passou em mim o novo. Eu duvidei do poder de cura, mais parecia água, e ela nem fez biquinho pra assoprar, fazendo vento pra carregar a minha dor. - Acho que foi por o risco ter me atraído, e eu tê-lo assumido e provocado, é que eu não me lembro do ente medo. Engraçado que agora torça pra que tenha. Acostumei-me com um poder premonitório esse tempo todo, agora eu só não queria acertar. Ponho a culpa num medo. Invento-o. Porém, não tenho mais bicicleta e o joelho já não serve pra lascar. Tenho uma rótula aqui dentro que sempre se desloca quando mexo, e até se mexe sem que eu queira. Será que essa eu posso arriscar? Se quem arrisca não petisca, estou me vendo comer poeira, com a cara no chão e o coração arranhado. Dá pra ver a carne viva. Ora, nunca esteve morta. Mas, uma vez machucada, o que há de fazer passar? Vai ser preciso muito ácido e atroz vendaval. Tudo bem, que seja, então. Pra mim, tem que ser assim: tem que arder para curar!

segunda-feira, 15 de março de 2010

A princesa sem um conto

Poderia jurar que ela está no tempo errado. Quando Carola me aparece distante, caminhando passos fortes com seu jeito expansivo e delicado, tenho visões de uma outra época. Sou capaz de ver a corte inteira enfeitada, e todos aqueles raios de sol invadindo os vastos salões com piso de mármore - branco, só para irradiar a filha caçula do rei que não existe.
Até no nome, Carola não pode ser daqui. Os longos cabelos amarelos, que formam cachos irregulares nas pontas; os olhos pequeninos de garota levada e doce; o nariz arrebitado, comum às altivas rainhas da minha boba imaginação. Se desenho na magreza peculiar dela um vestido de tecido fino, com muitas saias sobrepostas e corset apertado repleto de pedras encravadas, ponho logo no pescoço uma gargantilha de pérolas, numa tentativa vã de representar o jeito gracioso e puro de ser infantil na moça moderna que pulsa e cintila ali.
Tão bonito vê-la correndo com o vestido suspenso acima dos joelhos pelas mãozinhas pequenas, típicas de princesa. Emociona-me a ternura naquele olhar comprimido pelas pálpebras restritas que, em hipótese alguma, restrigem os olhos do visível e invisível nesse mundo. Ela consegue ver coisas que nem mesmo os esbugalhados podem ver. Ela ainda gosta de ver. E sorri sozinha, sem vergonha, das bobagens da vida, conscientizando-se de como são incrivelmente maravilhosas.
Carola sabe sentir, e sente. Sente até a mim, aqui, embasbacada com a possibilidade dela não ser desse tempo. Feliz com o desenho romântico que meus olhos lânguidos criam só de olhar. Definitivamente, não é só imaginação. Se tem alguém que cabe tão bem num conto de fadas posto à prova por meus dedos, a princesa encantada da minha narrativa não será outra moça senão Carola. Não mudo sequer uma característica. Deixo assim como me apareceu, como se sempre tivesse feito parte daquele lugar em que eu me encontrava sem encantamento e magia. Pena que Carola não é fada, mas ainda bem que posso vê-la de vez em quando - mesmo que reprimida pela maldição da frigidez -, e não me deixar esquecer nunca que a vida é um glamouroso baile de gala que sequer cabe em tempo algum.