domingo, 31 de agosto de 2008

O estrangeiro velho

A imagem daquele senhor entrando pela sala mudou o meu dia.
Tinha os cabelos grisalhos e bagunçados; uma barba homogênea, espessa e grande; um jeito de andar sem pressa, não lento.
Era belo. Sim, trazia consigo uma beleza estrangeira, nada parecido com que eu pudesse comparar. Era alemão. Era um homem maduro comum, mas mexeu tanto com os meus sentidos que passou a ser especial.
Sentou-se de fronte a mim junto a outras pessoas numa mesa comprida. Vestia um conjunto de tom pastel, com alguns botões metálicos e bolsos grandes. Usava óculos que ofuscavam um pouco a cor dos seus olhos - não sei se eram cor de mel ou verdes e... fumava.
Poxa, ele fumava. Decepcionei-me ao vê-lo buscar um cinzeiro grande de barro. O vento não amenizou minha frustração e trazia a fumaça em minha direção.
Não suportei. Precisei sair mais frustrada ainda, já que era obrigada a me distanciar um pouco de toda aquela sensação de bem-estar que o ambiente proporcionava.
Distraí-me, olhando algumas peças de arte em cerâmica. Toquei algumas coisas na intenção de perceber poeira - essa mania se manifesta algumas vezes quando preciso não acelerar (o que é diferente de precisar me acalmar).
Não percebi o tempo que levou para ele tragar todo o cigarro, mas logo me acomodei no mesmo lugar.
Voltei a observar o senhor com mais cuidado. O fato de fumar chamou tanto a minha atenção que agora buscava qualidades para suprimir aquele defeito. Achei. Vi naquele homem muito tranquilo, uma pessoa honesta e cheia de ideais. Nada bossal, parecia ser mais da terra que qualquer natural do lugar. Pela primeira e única vez, o cheiro de nicotina foi... agradável (?).
Falou algo sobre a política local, mas eu não dei importância a isso mais do que o delicioso sotaque que meus ouvidos ansiavam em ouvir novamente toda vez que ele finalizava um pensamento. E as risadas, então? Ria um tanto atrasado de qualquer coisa engraçada, e eu não sabia diferenciar um riso maroto de um irônico.
Não. Eu não me apaixonei por um senhor de cabelos brancos. Apaixonei-me pela idéia de existir alguém assim.
Era artista. Trabalhava com esculturas de ferro e mecânica. Infelizmente, só passei um rabo de olho no seu ateliê.
Eu nem sabia que prestava atenção tão minuciosamente nisso tudo, mas, de repente, um estalo na minha cabeça fez com que elencasse todos os julgamentos e análises a respeito daquele adorável homem num só instante.
Meu coração sentiu-se vazio e eu pensei em inúmeras pessoas comparando-as com o senhor sempre a minha frente. Parei em alguns pensamentos, conferi algumas idéias e segurei meu coração para que ele não transbordasse carência naquele momento que a natureza ajudava a tornar incrível e ainda mais cheio de sensibilidade.
Entendi que vi naquele velho moço - acredito ser a melhor definição para aquele indivíduo que começava sua melhor idade - tudo o quanto uma pessoa precisa ter para que eu disponha a minha vida plena e inteiramente.
Finalmente, com um sorriso no rosto, quase adormecendo no carro, de volta para a rotina da minha vida, depois de todo o muito tão simples e tão significativo, concluí que abri meu coração. Senti-me livre, leve e feliz.

sábado, 30 de agosto de 2008

O cérebro é uma pista de dança


criação de Asagi Kamikakushi.

Ninguém ouve nada.

Está na sua própria boite.
Nem se balança.
Embalam-se as sinapses.
Tuntz, Tuntz, Tuntz.
O coração não segue o mesmo ritmo.
Tuntun, Tuntun, Tuntun.
Se entrar, deixe-o por último.


emoção de Memphistoeh.

Perdido


Paula Toller - Tudo se perdeu

Caminha só e traz consigo uma mochila com esforço, alternando a situação da carga e a posição do corpo.
Dá os passos mais tortos pelo caminho mais tortuoso; suja-se da poeira do lugar ermo se impregnando de nada.
Quantos pensamentos tem? Não pensa em coisa além de agir.
Age por impulso alienígena, que aquilo não pode ser coisa de animal algum que habite a Terra.
Desumano ou humano demais, é só um projeto para ser alguém, para ter alguém, para não ser ninguém.
Não conhece os detalhes da estrada que se aventurou cheio da esperança maldita de ser feliz. Ignora a possibilidade de voltar por medo e, quando se finge de destemido, justifica sua imobilidade pela rigidez do tempo.
Nem quando sente dor, pára. Insite numa busca de completar-se insensata. Será que não vê que não é rodeando o mundo que vai chegar ao lugar de origem?
Cada lugar, um algo a mais: fica repleto de tudo que há de menos. Cheio de solidão, dor, insegurança, medo, saudade...
Vai se envergando mais a cada passo. A mochila parece se encher em cada novo ambiente que não se diferencia muito do anterior. É inútil todo e qualquer ato. A postura não é mais autoritária e há tempo deixou de ser encantador.
Mendiga tudo que é passível de ser disponível. Mendiga até o que não pode. Piora em tudo, fica podre. Porco, nojento, grosso!

...

Não há nada na mochila. Foi apenas o jeito que achou para mascarar sua vontade de sumir com a idéia de aventuras a fazer e maravilhas a conquistar.
O vazio pesa. Enverga-se pois envergonha-se.

Não é mochileiro num lugar dotado de sentido, é andarilho perdido.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

- Acertaram-me!

Um projétil disparado por acidente a invade e se aloja no peito.
Dor que se suporta por pouco tempo e ela já aceita o fim.

Um gemido faz com que ele olhe para trás.
Um desespero faz com que se ajoelhe diante daquele corpo ensanguentado.


- Acertou-me!

Confere enlouquecido o revólver maldito.
Pensa em suicídio.
Não restam mais projéteis.


- Socorro! Alguém me ajude!

Silêncio.
Não existe nenhum som além do flamejar de uma fogueira de madeira, palha e papel e das poucas e já descompassadas
batidas de um coração em hemorragia.

- O que eu faço? Diz-me! O que eu faço?
- Arranca meu coração!!!

E continua.

- Fique com todo ele. Não faço questão. Não me serve para muito mais coisa além de tudo entre nós. Faça-me sarar! Pegue seu punhal, ponha-o em brasa e
...

Estanque... Estanque!

Mika - Happy Ending

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Suspiro de morte

Um suspiro de morte.

Um crime e aquele corpo foi deixado ali, desnudo.



"Moça não-identificada com aproximadamente 23 anos, morena, magra, estatura mediana é encontrada morta no jardim botânico municipal".

Todos os noticiários informam o crime naquela pacata cidade do interior.
Indigente, ninguém reconhece o cadáver.
Parecia que o corpo fora plantado na cena do crime para que a cidade omissa e retrógrada se manifestasse a respeito de algo. Os meninos fizeram alvoroço assustando as meninas; os homens comentaram sobre o desperdício de tão belo corpo; as mulheres desenvolveram um medo de andar pelas redondezas do jardim botânico; as beatas achavam uma pouca vergonha aquela multidão em volta de um corpo nu.
Os boatos corriam: era uma prostituta, era uma visitante, era a nova professora da escola que chegara antes do esperado, era uma selvagem do bosque. Milhares de teorias foram propostas, nenhuma fazia muito sentido.
Uma senhora de idade, maior conselheira da cidade, diante do corpo, indagada sobre o assunto, apenas cobre a moça nua com seu chale: "Ela sente frio".
As autoridades policiais finalmente retiram o corpo da cena do crime. Não houve muito a ser analisado ali. Não existiam indícios muito concretos que levassem à solução do caso.
As pessoas daquela cidade, apesar de quase nunca vivenciarem situações fora do normal, se esqueceram logo ali da moça nua e retornaram aos seus afazeres.
Restava fazer a autópsia.
Deitada naquela maca gelada, a moça permanece serena, muito embora seja clara uma profunda expressão de tristeza.
Com uma breve olhada, percebem-se cabelos negros e longos, olhos amendoados, boca carnuda, traços finos de alguém que poderia ter conseguido realizar qualquer vontade, pescoço comprido, seios firmes, cintura torneada, pêlos bem cerrados. Bonita!
O médico legista vindo da cidade vizinha distante até se comove diante daquela beldade. Qualquer um se sentiria atraído vendo aquela mulher nua, mas agora era só uma morta.
Fria. Fria. Roxa.
"O que se passou com você, moça? Quem foi capaz de cometer tão terrível crime?", o médico legista disse.
Nenhum sinal de agressão, nem estrangulamento, nem estupro, nem atentado violento. Nada. Os exames toxicológicos não confirmaram a suspeita de envenenamento. Hora de abrir.
Bisturi, afastador de costelas, um belo coração. Mãos cobertas de luvas brancas e limpas, olhos azuis atentos. Atenção, atenção. Um toque, uma pulsação.
Assombração, demônio, zumbi, milagre, emoção.
Ela cora.

Um suspiro da morta.

domingo, 24 de agosto de 2008

Organismo enganado

Encostada na parede daquele ambiente sonoro, multicolorido e impessoal, Marta busca as idéias que fogem diante da sua mais próxima companhia.
Nada se justifica na altura, no sorriso largo, nos olhos expressivos, na sinceridade, mas tudo se encontra no nível elevado sem razão, na alegria desmedida, na emoção instantânea, na canalhice e, sobretudo, nos suspiros e abraços repletos de intenção.
As brincadeiras provocam pensamentos em Marta que, se importando com todas as variáveis, faz cálculos de cabeça baixa. Procura a resolução da questão sem incógnitas que lhe desafiaram a resolver. Ela já sabe o que quer.
Quieta naquela parede, não ouve, não vê, não sente, concentra-se. Destaca-se da multidão que se embala ao som indefinido. Esforça-se para pensar, ao remexer um pedregulho no chão. Distrai-se. Abraçam-na.
Abraçam-na! Cheiram seu perfume doce, tocam-lhe as costas, beijam-lhe o ombro. Respiração ofegante, abraço impuro. Abraçam-na! Retiram-na do caminho dos pensamentos. Todos os atos estimulam os instintos. Ela se desprende daquele imenso e quente conforto rumo à sensação de fundir-se.
Quase totalmente maleável, deslizando por tecido epitelial diverso, sentindo célula por célula, rastejando calmamente até lábios de sorriso largo, uma mais forte oxigenação no sangue causada por uma única batida acelerada comprime a mente.
Engana-se. O corpo pede, pende, perde.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Uma cena


Sou eu a maior personagem de todas. Meu nome também começa com "M" e tem toda a especialidade do seu significado. Eu sou a atriz e a espectadora do monólogo que eu mesma fiz.
Tenho técnicas muito eficazes de assumir as personagens que também produzo e dirijo.
Vou ao teatro todos os dias e limpo cada cadeira vazia, vasculho cada canto, enrolo todas as cordas e sacudo todas as cortinas, já que também sou a zeladora do lugar.
Escolho cada figurino com muita atenção, porque todos eles poderão dizer por mim o que meus lábios sequer vão balbuciar.
No camarim, sento-me diante daquele enorme espelho que tem algumas lâmpadas queimadas. Ao meu lado existem flores que eu mesma encomendei do floricultor do outro quarteirão, também um singelo bilhete de admiração. Maquio-me, penteio-me, confiro os detalhes do figurino, emito sons esquisitos para esquentar a voz, dou as mãos ao vento, fecho os olhos e rezo: "...que tudo ocorra bem, que a casa esteja cheia e que eu não erre as falas".
Daí, os passos até o palco são inquietantes. Ainda tenho que abrir as cortinas.

...

O primeiro pé no palco range a tábua. Assustada, hesito em continuar.
De olhos fechados, tateio com os pés o caminho até o centro. Imagino que ninguém vai perceber minha timidez e meu temor e que farei com que acreditem que tudo aquilo faz parte do espetáculo.
Olho em volta rapidamente para ver se encontro alguém conhecido que me estimule a apresentar com mais intensidade. Infelizmente, a luz a mim direcionada atrapalha minha visão e tudo que eu vejo são vultos. Ignoro a agonia em não poder olhar profundamente nos olhos de alguém.
Um silêncio me invade de tal forma que desconsidero tudo o que já ensaiei. Improviso.
Falo só comigo, ou melhor, falo ali no palco com minha solidão. O momento de criatividade dura. É preciso ser breve antes que seja fastidiosa demais. Deixo de dizer certas coisas. Dou o fim. Apagam-se as luzes e não vejo ninguém.
O teatro está vazio, todo ele está vazio, nem mesmo alguém esperando para pedir informações que nada tem a ver com o espetáculo.
Fecho os olhos outra vez e, assim, dispo-me por completo. A maquiagem borrada deixa à mostra todas as dimensões do meu eu, todas as personagens reveladas.
Ouço palmas; o teatro está vazio; eu estou repleta de tudo.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Sonhos, para que mesmo?

Todos já dormiam, só ela estava acordada. E atordoada.
Vagou pela casa durante a madrugada, buscando algo que diminuísse sua angústia sem origem e distraísse seus pensamentos sem nexo.
Comeu quase todos os biscoitos do pote sem ter fome e sem sentir prazer. Só se ocupou, mastigando as guloseimas pequenas e crocantes.
Fez alguns barulhos na cozinha enquanto futucava a geladeira procurando as reflexões congeladas. Talvez desse certo se pusesse no microondas e as digerisse como se deve, mas resolveu só fazer um suco. O liquidificador zunindo em seu ouvido até que provocou certa sensação de alívio. Triturou, na verdade, algumas lembranças que sempre surgiam nos momentos parecidos com aquele.
Entalou-se com o suco que ficara grosso e consistente demais. Diluiu em água; esqueceu de pôr açúcar. Intragável, mas definitivamente tragado.
Duas horas da manhã e deitou-se na cama enrolada em dois cobertores. Enrolou-se em mil de tanto que rolou de um lado a outro, ao procurar a melhor posição.
As imagens do televisor ligado, os sons, as vozes dos atores dos filmes não se diferenciavam de mera estática. O esforço destinava-se à atenção para si mesma!
Desistiu de dormir, logo logo o despertador a alertaria do horário que começava sua rotina. Na verdade, não via mais utilidade em fechar os olhos. Já fazia parte da rotina não dormir.
...


Acordou, sem sobressaltos, certeiros segundos antes da ação desesperada do despertador.
A realidade não mudou em nada no intervalo de tempo do seu "piscar de olhos". Não se importou. Estava bom daquele jeito. Estava bem daquele jeito.


Sonhos, para que mesmo?

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Ex-possível

Os opostos se distraem,
Os dispostos se atraem.
Realejo, O teatro mágico.

Para quem não acredita que a virtualidade cria um mundo real mesmo que seja só imaginário, aqueles dois são a prova da existência de tudo.
Inseridos em mundos absolutamente diferentes, se encaixaram na regra de que os opostos se atraem e a oposição coroou a distração carente e divertida.
Ao narrar o quase-nada muito grande, acrescento que os distantes não se repelem diante de tamanha curiosidade circundante; ao narrar o tudo muito pequeno, revelo que o início e o fim possuem os mesmos propósitos e razões.
Dessa vez, não há como caracterizar pormenorizadamente os personagens ou elaborar reflexões profundas. A revelação de qualquer coisa acerca do (im)possível destroçaria a magnitude da simplicidade - chave, fundamento e base. Definições não são imprescindíveis nesse instante, apenas foi em momento final recente, por se entender que acordar é melhor que dormir.
Tanto de virtude que simplesmente é. A entidade não se nega a nada e, os entes se aceitaram sem certames além do cumprimentos identificadores de afeição.
E simplesmente foi a possibilidade que simplesmente passa como simplesmente chegou.
Ninguém simples mente, ninguém simplesmente desmente que ficou o simples em mente.

Detestável DISPOSIÇÃO geográfica repelente(sic!).

domingo, 17 de agosto de 2008

Devoradora de almas*

O mundo é grande...
... e cabe no breve espaço de beijar.
Carlos Drummond de Andrade

Não tendo vivido histórias infantis e mirabolantes quando a idade lhe proporcionava todos os meios, aquela mulher, depois de lamentações e tentativas frustradas de contradizer sua natureza séria e ranzinza, fez-se feiticeira.

Desenvolveu o poder comum da sucção de almas, fazendo-se mestra sem se deixar ser percebida. Junto com sua natureza que não se pode dizer precoce, mas simplesmente e desde sempre madura, estavam ali todos os efeitos de poderes naturais dos humanos que só os mais sensíveis não deixam atrofiar.
Tanto por sua natureza como por escolha, jamais soube na prática o prazer de cada idade. Bastou a ela que analisasse o comportamento humano rechaçando posturas e posições que qualquer um - tipo que não se insere - poderia/gostaria de estar.
Nunca foi seu propósito ser diferente, talvez pela crença de ser insanidade negar que a diversidade é mais-que-natural, sendo mesmo regra universal. Guiou-se pela simplicidade sem parâmetros absolutos. Fez-se só, sem esquecer e aproveitando das divinas e diabólicas influências das experiências que não pôde nem quis deixar de viver. Ainda assim, poderia ter sido eremita, tendo todo o talento para isso.
Quando o que possuía em si e ao seu redor diminuiu a frequência das rotações aleatórias e dinâmicas, elaborou, por alquimia, a fórmula de um seu elixir capaz de curar, fortalecer e rejuvenescer o corpo humano (semelhanças com a Pedra Filosofal é boa e mera coincidência). Aquilo que antes causava vertigem ao circundar-lhe, agora a iluminava.
Com dotes instintivos, criou substância atrativa para o fim a que parte de sua existência se destinava. Faltavam apenas alguns ingredientes: a graciosidade espontânea e a espontaneidade graciosa da juventude.
De repente, esporadicamente, passou a sugar pequenas doses de almas de todas as idades - só o acaso, muito favorável, lhe concedia o melhor viço dos mais novos. Nada assustador ou egoísta, muito menos fundamentado em pura ambição, já que fornecia em troca a segurança e a paz de sua natureza já descrita.
A feiticeira era uma devoradora de almas. Melhor do que se sentir jovem, era sentir sua alma desprendendo-se do contorno corporal para ajustar-se perfeitamente com aquilo que estava a somar. Para isso, só os lábios bastavam - emboram não fossem suficientes.

*verídico

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Aquele fumante

Tragava aquele cigarro com prazer, gozando a sensação de trazer pra si algo real, ainda que não palpável. Misturava-se à fumaça por se deixar tocar e tocava aquela porção de tabaco nos lábios ora levemente, ora ferozmente.
Sentia-se melhor desde o acendimento. O barulho do fósforo queimando, a sutileza do fogo, o assopro do vento apagando a chama, a insistência em foguear um outro palito, todo aquele ritual provocava ainda mais excitação.
Ah, a primeira tragada!
Não se previa o fim do cigarro. Saboreava cada parte como se pudesse distinguir e mensurar cada ingrediente nocivo e tranquilizante.
O modo como cruzava as pernas enquanto fumava lhe conferia um ar de poder e uma graça. Era quase um rei, coroado de fumaça.
Se muito ou nada pensava, não tem importância. Fumava. Tudo aquilo que adentrava permanecia por alguns instantes em seu corpo, e como era bom se sentir corroído, e como era bom se sentir corrosivo ao expelir o que ali não podia ficar.
As cinzas se espalhavam por qualquer lugar por sua insignificância. Mal sabia quem fumava que eram marcas mais-que-significantes.
No fim, sem que a chama alcançasse o filtro, no chão mesmo, ignora o toco daquilo que consumiu ao precisar.
Havia matado a vontade. Decerto e logo, ela iria voltar.

Uma homenagem a Evelon Oliveira.


Chama e Fumo

Amor - chama, e, depois, fumaça...
Medita no que vais fazer:
O fumo vem, a chama passa...

Gozo cruel, ventura escassa,
Dono do meu e do teu ser,
Amor - chama, e, depois, fumaça...

Tanto ele queima! e, por desgraça,
Queimado o que melhor houver,
O fumo vem, a chama passa...

Paixão puríssima ou devassa,
Triste ou feliz, pena ou prazer,
Amor - chama, e, depois, fumaça...

A cada par que a aurora enlaça,
Como é pungente o entardecer!
O fumo vem, a chama passa...

Antes, todo ele é gosto e graça.
Amor, fogueira linda a arder!
Amor - chama, e, depois, fumaça...

Porquanto, mal se satisfaça
(Como te poderei dizer?...),
O fumo vem, a chama passa...

A chama queima. O fumo embaça.
Tão triste que é! Mas... tem de ser...
Amor?... - chama, e, depois, fumaça:
O fumo vem, a chama passa...

Manuel Bandeira

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Ninguém sabia a razão de Magda andar por ali, até mesmo ela ignorava o sentido que tomavam os seus passos.
Por educação, cumprimentou conhecidos e, com simplicidade, sorriu, disfarçadamente, achando graça nas cantadas toscas que recebera de homens de todos os tipos.
Magda só queria ocupar seu coração, mas o esvaziou ao concentrar todas as energias em suas longas pernas.
Seguiu com a função 'automática' ativada. Perto de casa, percebeu que sentia falta de uma certa companhia.

domingo, 10 de agosto de 2008

A Boneca

Magali deixou de ir na varanda de casa com sua mãe e seu irmãozinho, quando tiraram dela sua boneca.
Havia recebido a Estela aos 5 anos e já se contavam 3 primaveras com a boneca falastrona.
Estela fazia de tudo. Dizia milhares de frases que Magali nunca enjoava de ouvir, mais parecendo um brinquedo que revelava sua sorte - tinha sempre alguma palavra de conforto e alegria para a menina; cambaleava da melhor forma para uma boneca e, Magali adorava imitar os gestos engraçados do brinquedo; piscava aqueles lindos olhos que pareciam mais reais que o da própria menina; e ainda fazia outras muitas coisas que só a Magali mostrava, devido a profunda intimidade que tinham.
O primeiro encontro havia sido mágico. Magali não ganhou nada de presente no dia das crianças daquele ano, mas ganhou a Estela no dia seguinte quando não tinha mais esperanças de mostrar as suas amiguinhas o brinquedo daquela data.
Abriu a caixa com todo o cuidado para não estragar o papel de presente que sempre guardava, sendo que, na verdade, era devassada pela riqueza de detalhes daquele brinquedo. Magali, tão pequenina, de olhos esbugalhados, se viu tomada por um sentimento magnífico. Tornou-se amiga, tornou-se mãe. Agradeceu aos pais e guardou a boneca.
[Guardou? Mas não havia ficado feliz com o presente? Ah sim, ficou tão feliz que quis preservar a boneca das intempéries do tempo, da cobiça dos invejosos e tê-la só para si!]
Magali era definitivamente uma menina especial e fora do comum, apresentando com frequência qualidades pouco correntes até para os mais velhos.
A garotinha brincava com Estela sempre que podia, apesar de todas as tarefas e cursos durante a semana. Magali sempre dava um jeito de ficar perto da boneca quando sua mãe se distraía. Conversavam quase todas as madrugadas e, sem perceber, foi sendo dominada pela boneca. Mudou seus hábitos alimentares, mudou seus horários, leu mais historinhas, fez até um diário para que Estela a ouvisse lendo.
Estela tornou Magali ainda mais especial, aumentando sua compreensão, doçura e preocupação com os demais.
Nas tardes de domingo, Magali levava Estela até a varanda de casa para acompanhar sua mãe e seu irmãozinho sentindo a brisa leve e o calor sutil dos últimos raios de sol. Fazia questão de mostrar tudo que podia para a boneca.
E Magali foi crescendo e se preocupando com outras coisas. Estela não foi deixada de lado, mas as conversas entre a menina e a boneca eram menos frequentes, o que piorou quando Estela teve um problema que a fazia repetir as mesmas frases em curto espaço de tempo.
Magali deixou que a boneca decidisse o que fazer e, feliz ou infelizmente, bonecas gostam de ficar em caixas esperando por algum momento conveniente e datas comemorativas para que façam a diferença.
A menina só fitava a boneca junto a cama. Não quis guardá-la na estante. Afinal, não era um enfeite, era alguém definitivamente muito importante. A boneca se negava a falar como antes e já confundia as palavras gravadas, machucando Magali com suas grosserias.
Foi a mudança da família o dia mais trágico para Magali. Sem a sua supervisão, alguém encaixotou Estela sem cuidado entre outras tantas bugingangas antigas.
Ninguém deixou bilhetes - ladrões não deixam bilhetes [...] bonecas não deixam bilhetes! Deixaram a caixa, nesta, o aroma do perfume da boneca e o diário antigo da menina. Só deixaram isso. SÓ! "Melhor que tivessem levado tudo, melhor que nunca tivesse ganhado nada!" - disse a menina, no instante que conheceu a raiva.
Era muito pouco para Magali. Era quase nada para Magali.
Os dias não eram mais cheios de graça e nenhuma nova boneca seria como Estela, nem mesmo um brinquedo novo daquele modelo. Magali não quis mais saber de bonecas, mas se controlava para não observar as outras meninas brincando com as delas. Fingia que já era uma mocinha e que bonecas eram coisas para crianças.
Até que um dia, depois de considerável tempo se negando a expor sua saudade, sozinha, com alguns pedaços de tecido colorido, fez uma boneca de pano. Não tinha os olhos de Estela, nem as frases perfeitas, nem a expressão detalhada, servia simplesmente como boneca que era e, Magali, para sempre com saudade de Estela, ainda poderia se deitar no colo daquela e ali descansar sem medo de perdê-la.
[...]
Talvez, Estela estivesse feliz.
Talvez, alguém estivesse feliz com Estela.

sábado, 9 de agosto de 2008

A Moça do banco - A Espera

A moça retornou ao mesmo banco daquele outro dia.
Revezava o olhar entre o relógio e os lados da rua.
Acho que ficou ali a noite toda. Acho que nem dormiu.
Só levantou os olhos do chão - depois de tanto esperar - quando o sol nasceu ao longe.
Teve que sair pra trabalhar, mas encarregou um moleque que esperasse em seu lugar e desse o recado que lhe sussurrou no ouvido, ficando a dever alguns caramelos.
Voltou no seu horário de almoço. O moleque estava jogando bolinhas de gude sentado no chão e encostado no banco vazio. Deu-lhe os caramelos e mais umas moedas.
Esperou todo o seu horário de almoço segurando a marmita no colo. Nem abriu.
Um rapaz bonito, porém sujo, olhava para o seu almoço comprimindo a barriga.
Em troca do seu almoço, encarregou o mendigo que esperasse em seu lugar e desse o recado que lhe sussurrou no ouvido.
Acompanhou o ponteiro dos segundos no relógio da loja onde trabalhava, esperançosamente.
Correu quando acabou o expediente. Tinha pressa. Os cabelos se soltaram, a barra do vestido ficou suja e os sapatos se perderam.
Quando viu o banco de longe, percebeu que tinha alguém bem acomodado e de costas. Correu ainda mais.
Para sua mais profunda tristeza, não era quem ela esperava. Um velho barbudo tinha assumido o lugar para o mendigo bonito de antes.
O velho riu dela. Ela não se incomodou. Sentou-se e só admirou a risada gostosa daquele velho sacana.
O velho repetia alto o sussurro dela, e ria ainda mais:

- "Tenho uma caixa de tesouros inestimáveis para lhe dar". Eu esperei boa parte de minha tarde pra você e não ganhei nada. Eu quero o que você ia entregar a quem não veio.

Ela sentiu um pouco de medo, mas se agarrou à caixa ferozmente. Lutou com o velho até que ele desistiu. Permaneceu no banco novamente até o nascer do dia.
E todos os dias ela ia àquela mesma praça, se sentar naquele mesmo banco, e todos os dias perdia alguma coisa para alguém que lhe cobrava por poder avisar de seu sussurro.
Um dia, quando não se levantou ao amanhecer, reviraram a caixa.
Estava vazia, tinha esperado tanto que consumiu tudo sozinha.

07 de agosto de 2008¹


¹Quando acreditei outra vez (em vão).

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

A Moça do banco - O Transeunte

E sentada naquele banco sozinha, vestida glamurosamente, sem migalhas de pão, sem bengala nem sombrinha, com um livro do lado, segurando um lenço encharcado, de longe, parecia a velhinha que vi noutro dia.
Só parecia.
Levantou-se, e como era bela! Tinha um frescor nos lábios - mesmo que mordiscados -, um nariz autoritário, um pescoço bem talhado, mas uma alma triste. Mexeu no penteado bem armado, remexeu nos olhos molhados, agarrou o livro e andou alguns passos.
Um envelope caiu do livro e, como se tivesse sentido menos peso em suas mãos, olhou pra trás e fitou profundamente aquele papel; como se não quisesse que percebessem seu deslize, disfarçou e agachou segurando o coração.
Respirou lentamente e alcançou o envelope. Abriu, puxou um papel delicadamente dobrado e perfumado, leu um vocativo, sorriu sutilmente e no verso escreveu:

- Querido transeunte que encontrou tal carta, se alcanças o verso, deduzo que leste em completude. Saibas que tens em mãos o que um dia foi o melhor de mim.
Hoje, eu decidi, com simplicidade, não mais ser assim. Talvez não sendo mais, eu possa denominar-me feliz.
Leve consigo, tão querido desconhecido, aquilo que eu destinei a quem jamais quis.
Não agradeço sua leitura, já que é só o acaso que julgo, esperançosamente, bem aproveitado, mas dedico-lhe o mesmo amor, por fim.

[...]

Eu vi a velha, a moça, o livro, a carta e até quem leu tudo.

14 de junho de 2008,
Uma homenagem a Diego Coelho.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Vou fazer um conto

Vou fazer um conto para ver se dá para ser aquilo que não pude;
para viver o que imaginei mais amiúde;
para ter nas mãos aquilo que me une;
para crer que há algo que me mude.

Vou fazer um conto com embustes, historietas,
intrigas e tretas.

Vou fazer um conto apenas para ser
aquilo que eu sou e ninguém vê.