quarta-feira, 27 de março de 2013

Reedição

 

 

quarta-feira, 24 de março de 2010


Queda



Estou pedindo pra ser só medo. É que não me lembro da última vez que caí, ao me desequilibrar por desconcentração e receio. Das cicatrizes nos meus joelhos, lembro-me que apenas uma foi por vontade. Aquela ladeira íngreme e comprida que, virando, dava num muro cheio de quinquilharias, era atraente. Posso até ver a imagem que meu cérebro conseguiu processar naqueles intensos segundos em que meus olhos vidrados eram ressecados pelo vento causado pela aceleração da minha bicicleta caloi. Eu, que nunca fui de travessuras, não era gente com aquela máquina rosa-bebê nos pés, já que as mãos quase sempre ficavam no ar. Parece até que tatuei a nossa parceria; não poderia contar quantas emoções foram estampadas à fina ranhura no meu corpo. Eu nem sei que fim levou minha caloi, mas o medo aliou-se a mim depois da dita queda. Gabo-me de não ter chorado. Sequer voltei pra casa com o rabinho entre as pernas, escondendo os ferimentos pra que não passassem merthiolate. - E merthiolate não arde mais. Uma pena, eu adorava ouvir minha madrinha dizendo "eu assopro, eu assopro". Esses dias ela passou em mim o novo. Eu duvidei do poder de cura, mais parecia água, e ela nem fez biquinho pra assoprar, fazendo vento pra carregar a minha dor. - Acho que foi por o risco ter me atraído, e eu tê-lo assumido e provocado, é que eu não me lembro do ente medo. Engraçado que agora torça pra que tenha. Acostumei-me com um poder premonitório esse tempo todo, agora eu só não queria acertar. Ponho a culpa num medo. Invento-o. Porém, não tenho mais bicicleta e o joelho já não serve pra lascar. Tenho uma rótula aqui dentro que sempre se desloca quando mexo, e até se mexe sem que eu queira. Será que essa eu posso arriscar? Se quem arrisca não petisca, estou me vendo comer poeira, com a cara no chão e o coração arranhado. Dá pra ver a carne viva. Ora, nunca esteve morta. Mas, uma vez machucada, o que há de fazer passar? Vai ser preciso muito ácido e atroz vendaval. Tudo bem, que seja, então. Pra mim, tem que ser assim: tem que arder para curar!







Eu deveria ter confiado mais no meu "poder premonitório". Continua ardendo tudo aqui.