segunda-feira, 18 de maio de 2009

Todo torpor

capital inicial - fogo

Nunca vi tamanha harmonia naquele corpo esguio, muito menos aquela alegria no rosto comumente sério. Fiquei fitando ela de calcinha branca com o busto nu, coberto apenas pelo mp4 pendurado no pescoço, com cara de babaca e preso ao chão.
Ela nem me ouviu bater na porta e eu entrei achando que podia. Nem ouviu nem me viu, estava perdida, ou achada, em si mesma, dançando diante do espelho como se estivesse seduzindo alguém. Parecia uma adolescente apaixonada, eu nunca pensei que pudesse ser assim. Mas estava lá, se divertindo com a música que ouvia sozinha, como se fosse a maior maravilha do mundo estar com os seis desnudos balançando e os cabelos desarrumados se arrumando ao vento, sem convenções.
Por um segundo cheguei a cogitar que eu teria alguma influência sobre aquela alegria descomedida que ela só mostrava para o espelho no quatro fechado. E que quarto cheiroso! Milhares de cheiros dos vários cremes que ela inventou agora de passar pelo corpo para envelhecer mais devagar, acreditando que a velhice chega num piscar de olhos.
Que piscar de olhos que nada. O vigor da juventude todo ali e ela escondendo de todo mundo nas roupas folgadas. Eu não havia imaginado o quanto era bonita daquele jeito, nem mesmo nas vezes que medi sua silhueta com as mãos. Mexeu tanto comigo que eu nem consegui me mexer, e o meu piscar de olhos foi uma eternidade, não porque eu me esforcei em segurar minhas pálpebras para que não se movimentassem, com medo de perder toda aquela imagem deliciosa.
Meu Deus, aquela imagem não sai da minha cabeça!
Inerte, quando consegui pensar em tomá-la para mim, a música acabou.

- O que você está fazendo ai? - disse, rindo de mim.
- ... Vim trazer café pra você! - respondi dando as costas envergonhado. Ela me acharia um tarado.
- Dei-me aqui!
[...]
- Uai. Está frio.
- Desculpa. Acho que esfriou. Espera. Eu pego outra xícara.
- Não precisa. [...] Ei, fala olhando pra mim.

Que diabos ela tinha que me mandar olhar de novo? Daí, que não consegui tirar mesmo os olhos de seu corpo.

- Obrigada.
- Não há de quê. Eu conheço seus vícios. - Quis parecer dominante. Ilusão!
- E é?

Veio em minha direção, tirando um dos fones do ouvido para colocar no meu. Quase derreti quando passou meus cabelos para trás, descobrindo minha orelha.

- E então...
- E então, o quê?
- Não conhece meus vícios?
- Acho que sim. - Titubiei.
- E então...
- E então, o quê?

Um sorriso malicioso se fez nos lábios rosados:

- Me beija!

Um comentário:

Jaya Magalhães disse...

O mais engraçado é que essa música já foi dedicada a mim, um dia. E lendo o texto com ela de fundo, fiquei fazendo fusão de uma imagem eu-personagem, que ocorreu, inevitavelmente. Não a cena. Não o alguém. [Apesar da minha mania "dance como se ninguém olhasse" ocorrer dentro do quarto - e só].

A moça me lembrou um jeito "Dulce", de ser. Não sei, acho que casamento de letras e tons, creio.

Que mais? Li o texto abaixo. Sempre quis, um dia, fazer algo inspirado em "De onde vem a calma", mas nunca consegui. Imagino que ele sairia diferente do teu, tendo em vista os moldes de onde sairia o "cara". Mas, Madá, que delícia de cena a que você narrou, sabe? Foi como se eu me fizesse presente, lá, numa das mesas próximas, a observar as agonias deliciosas dela enquanto o fotografava em si.

"Eu já não tenho escolha, participo do seu jogo..."

E sempre.

Tinha perdido a mão, né? E agora voltou de corpo inteiro. [Presumo, e desejo].

Beijos e beijos, que te encontram aí.