domingo, 22 de março de 2009

Ligação anônima

Com a mão no aparelho pensei na loucura de telefonar pra dizer as coisas que ela pediu sem que sequer tivesse vontade de dizer.
Talvez ela achasse muito estranho ouvir minha voz infantil, talvez achasse graça na minha falta de jeito, talvez ignorasse minhas palavras ao pensar que fosse trote. Certo é que ela faria tudo isso, afinal, meu telefonema não passaria de uma peça pregada por meu eu-infantil.
Mesmo assim, segurei o telefone e o fitei por alguns segundos tentando, ao olhar para as teclas, descobrir o número da residência dela. Nem sei se tem residência, parece mais que tem apenas celular, acho até que mora só, nem deve estar em casa uma hora dessas e, se estiver, deve ter alguma companhia lhe ajudando a preparar o almoço de domingo, ou mesmo pode estar ocupada demais com o fone nos ouvidos enquanto faxina a casa.
- Queria saber o que ela escuta e se vê graça em faxinar a casa como eu.
Ela deve morar em algum prédio, e o apartamento dela deve ter varanda, e deve ser muito engraçado vê-la gritar as músicas felizes de Zeca Baleiro enquanto varre a sala.
A cozinha dela deve ser prática porque penso que ela não deve gostar de perder muito tempo cozinhando pra si mesma. Então, nem deve ter pratos sujos na pia, além de um copo, uma caneca, um prato, uma colher de chá e o pote de danoninho, remanescentes do rápido café da manhã.
Porém, hoje é dia de faxina e ela deve ter tirado algumas panelas pra ariar, lembrando que a mãe sempre reclama que as panelas de alumínio precisam estar brilhantes quase como espelhos. Talvez ela não goste da idéia de estragar as unhas vermelhas com a esponja de aço, e nessas horas deve preferir as panelas de aço inoxidável que viu no canal de vendas. Não, talvez ela já as tenha e dispense esponjas de aço e muito detergente porque fazem mal ao meio ambiente.
Aliás, ela nem deve usar panelas cotidianamente. Acho que encomenda marmitas e se salva com o microondas quando chega do trabalho - ou será universidade? - no horário de almoço. Acho também que ela deve detestar o gosto que o microondas confere aos alimentos, ou melhor, o gosto que tira.
- Nossa, como ela deve estar ocupada. Se eu telefonar nem vai escutar o celular tocando a música de entrada da novela das 20h que passa na Globo - deve ser hilário vê-la tentando cantar a música indiana da moda, só por conta do seu nome de mesma origem -, e ai meu número vai ficar gravado... e se ela retornar?
Pior se o celular estiver no bolso da bermuda velhinha-de-fim-de-semana-em-casa, com o vibracall acionado, ela atender e eu ficar muda. Ela pode pensar que tem algum psicopata apaixonado por ela e desligar o telefone na minha cara. E ela jamais faria meu tipo, sem preconceitos, mas não gosto de mulheres.
- Queria saber que livro ela anda lendo e o que vai fazer no sábado que vem. Estava pensando em ir à praia lavar a alma.
Posso ligar pra saber dos contos que ela mais gostou de ler e confessar o prazer que me dá ao vê-la sempre perto de mim. Entretanto, minha repulsa por telefones me impediria de passar tantas horas apegada a fibras ópticas. Aliás, meu favoritismo pelo silêncio me impediria de dizer qualquer coisa num primeiro encontro, e minha mania absurda de achar características em vozes costuraria-me os lábios. Ela certamente acharia estranho meus grunidos de confirmação.
- "Hum", melhor não telefonar. O que eu poderia dizer, não é mesmo?
Talvez eu pudesse dizer que quando tenho a idéia de escrever, penso qual a interpretação que ela vai escolher; que me condeno ao deixar que a preguiça e a falta de tempo me abatam por não escrever; que ela me traz os melhores sentimentos em forma de estímulos - opa, comentários.
- Ah, não custa tentar. Que mal há em telefonar para uma estranha?
E se ela for psicopata? E descobrir meu endereço e vir me sequestrar? [...] Seria um sequesto cultural, ando precisando mesmo respirar novos ares. E se ela não for nada disso, e não passe de uma boa escritora ilusionista como o personagem do filme que vi na madrugada de anteontem?
- Acho que criar suposições não está adiantando muito. Vou ligar!
E se ela rir da minha iniciativa?
- Não importa o que ela seja ou pense, devo seguir minhas atuais vontades antes que elas se dissipem.
Agarrando-me ao telefone, procuro um lugar mais calmo, em que a acústica de minha casa não possa atrapalhar a sonoridade da minha dicção. Perto da piscina é lugar bom e lá nem chia.
[...]
- Olha, o 'Princeso' está carente. Não morde, 'Princeso', isso dói. Da última vez que você veio com essas brincadeiras, minha mão inchou. Não é porque você tem esses olhinhos pequenos, esse corpinho musculoso, essas manchas charmosas, esses dentes afiados, essa carinha de pelúcia e essa empolgação toda que vai me fazer derreter. [...] Caramba, 'Bandite', já disse que dói. Ah, não quero brincar mais.
[...]
- 'Bandite', volta aqui. TRAGA O TELEFONE DE VOLTA! "Garoto mau"!







[...]
- Tudo bem, eu não sabia mesmo o número dela.



A antecipação absolutamente válida de uma homenagem a Vitória*, que merece boas atenções pelo coração apaixonado e apaixonante.



p.s. Abro a doce exceção das homenagens. Deixo os outros contos para depois.

4 comentários:

Jaya Magalhães disse...

Não sei arrisco pretensão ou burrice. Precaução, por medo de errar. Mas... eu, aí?

Haha.

Me explica, que eu volto.

[Atendo, sim].

E beijo.

Jefferson disse...

bjo me liga, amiga. rs

Filipe Garcia disse...

Oi!

Cê sabe que já tive dessa mesma vontede? Conhecer a pessoa por inteiro pelo fato de ela ter me cativado com a escrita? As palavras trazem um ar de proximidade tão grande que, sem querer, a gente vai visitando os cômodos da casa do outro. Mas é uma visita sem convite, mais por intromissão mesmo. Daí o interesse, o fascínio, a vontade pelo "ah, se essas palavras tomasse corpo, me pegassem pela mão e me levassem pra conhecer a varanda."

Gostoso seu texto. Li numa "sentada", sem tirar os olhos do monitor.

Não tinha te linkado ainda. Que erro o meu.

Beijo!

Jaya Magalhães disse...

E então que eu entro no conto, pois.

Penso na infantilidade dela de brincar com os chavões que escuta, e de fazê-los presença em momentos que talvez soem incoerentes. Ela não liga. Espera ligações.

Falta de jeito, inércia, mudez, mergulhos em silêncios musicados. Ela é assim. Primeiros encontros lhe soam estranhos, em qualquer dimensão que seja. E gosta assim. A vida já acostumou assim.

De mp4 nos ouvidos e uma música feliz do Baleiro, ela usa uma blusa de propaganda e faz uma faxina nos redores que pode chamar de seu. Mania de limpeza e organização, ela parece ter. E tem.

Não toma café da manhã, ouvi dizer. Acorda num mal humor insano, que nem ao estômago permite felicidade. Danoninho e pão de queijo ganham vez por essas bandas, todavia.

Lava, mas não enxuga. Carmim e maçã do amor formaram as cores do vermelho da última semana.

Às vezes ela senta, e pensa. Pensa nas letras que se espalham por aqui. Nas artimanhas de quem escreve. Nos porquês. E chega a engolir as palavras como sendo parte sua que houvesse escapulido de si, um dia. Chega a emudecer, diante das descrições. Faz desenho. Porque a moça das palavras, aqui, tem coração de poesia, e que isso nunca ouse aparecer em matéria.

Madá,

Ela, a moça do nome de origem indiana - e que odeia a Índia estar na moda - tem vontade de contar sobre a vida. É monossilábica, todavia. Lacônica. E tem preguiça de falar. Por isso escreve, talvez. Ficção, quase sempre. E sonhos de amores errados que já viveu, um dia. Sonho de amor atual, também.

Brincar de suposições torna a vida deveras interessante. Se você tivesse o telefone dela, sorririam da voz cor de rosa, uma da outra. Com o latido de Princeso combinado ao ressoar de uma guitarra que lhe atrapalha o estudo, aqui ao lado.

Pensa, por fim, que o encontrar de almas é eficaz. E da matéria, fica pra um dia de sol:

"Um velho calção de banho
Um dia pra vadiar
Um mar que não tem tamanho..."

[E tudo soa melhor que um telefone chamando].

Beijos, desligo.

[Saudades e carinhos, moça].