sexta-feira, 3 de abril de 2009

Traço de amargura (?)

Um telefonema o acorda. Era seu pai lembrando a ele que não deixasse de alimentar o cão, e ele, esquecido, disfarça mentindo que já o fez para logo desligar o telefone, sem sofrer a mínima bronca.
Um barulho vindo de dentro da casa movimenta sua curiosidade e o impulsiona a vestir a bermuda, mas o fato de levantar risonho já indica o conhecimento a respeito da sua companhia.
Procura ansioso, preparando um ataque surpresa, a origem e o causador do barulho, enquanto o cão o persegue faminto e carente. Pela casa toda, a procura é tão vã quanto a vontade de surpreender, e a percepção de estar só é que o assusta.

Certamente, foi o cão que tentou alcançar a bandeija de petiscos quase intocada, ignorada e deixada na cozinha, por ele ter se dirigido ao quarto de olhos entreabertos e revirados, tombando em todos os móveis que foram ora suporte ora obstáculo para o conflito acirrado que acontecera ali há apenas alguns instantes.
Na cozinha, parado, apoiado na pia, alcançou e bebeu o restante de vinho deixado numa das taças. Olhou para o objeto tão frágil, bem definido, comprido e, delicadamente, sentiu o aroma da última gota de vinho, tocando o cristal com os lábios repetidas vezes, até que pudesse engolir. E como se aquela única dose de vinho pudesse surtir gigantesco efeito fisiológico sobre o sistema cardiovascular, sentiu o sangue quente e, de repente, se fez rude, deixando grosseiramente a taça na pia, a tendo feito estalar.
Sufocando a cólera que bebeu daquela taça, deu ração ao cão que lhe tinha pena, mas fazia parecer fome, e tentou arrumar os móveis, objetos e quadros que havia tirado do lugar pouco tempo antes. Queria de uma vez mudar a decoração do seu lar, queria mudar a decoração do seu coração.
Cheio de dúvidas, com o coração numa das mãos, pegou o telefone com a outra. Apertou uma das mãos, imaginando ser a que segurava o telefone, mas sequer percebeu que estava a espremer o próprio coração. Nem mesmo o número conseguiu lembrar. Nem sabia o que queria dizer. Estava mesmo assustado. Lembrou-se da última ligação, tinha sido um pedido para lhe fazerem uma visita. Era o número certo.
Discou o atalho. Caiu na caixa postal.
Concluiu a organização da cozinha e da sala, quase sem força, pois era preciso que o ambiente fingisse por ele que nada acontecera. Arrumou a casa nos lugares onde qualquer visita não pudesse apreender o implícito muito além das aparências. Deixou o quarto por último.

No cômodo mais íntimo, não sabia por onde começar, não possuía noção alguma do que seria começo, do que teria sido o começo daquela desordem absurda.
Para onde iriam todas aquelas peças de roupa espalhadas? Como ele iria dasamassar os lençóis? Como iria se aquecer naquela noite? Como faria para dormir de novo? Como faria para se sentir melhor depois de ter acordado? Desistiu de pôr ordem no lugar. Era a imagem fiel da sua sensação, não poderia ser mais confusa.
Sentou-se e apoiou a cabeça nas duas mãos. Pensou tanto e só pensou no que pensar. O cão lhe foi solidário, futucando-lhe com o focinho frio. Ele não se sentiu menos só, mas afagou a cabeça do bicho, em agradecimento. Talvez tenha enchido os olhos de água, mas não quis demonstrar nem pra si mesmo. Bobo, ainda tentava fingir o que estava explícito exatamente no além-das-aparências.


Ela havia aceitado o convite para estar com ele aquela noite, com a simplicidade do desejo. Linda, perfumada e provocante, com uma meia calça sexy que só a sua personalidade não tornava vulgar, chegou, mal aceitou o vinho e os pesticos, mal deixou que ele falasse e/ou encenasse tudo que havia planejado, tirando-lhe logo o fôlego, ao tropegarem juntos até o quarto. Explodindo de angústia e pressa, ela impôs que ele se deixasse guiar. O mundo iria acabar dali a pouco.
Tudo acontecido foi tão narrável de ênfase que só para os dois não seria exagero. Ela havia comandado tudo, mesmo sendo ele o mestre dos acontecimentos.
Não tendo planejado nada, ela o esperou dormir. Consertou, então
o travesseiro e o beijou com toda a delicadeza que lhe era comum, mas que não houvera se manifestado em momento algum por dar lugar a extrema selvageria.
Olhou tudo em volta, já da porta, muito mais para se assegurar que tudo estava bem do que para gravar em sua mente as imagens que se mostravam ali. Brincou com o cão, trancou a porta por fora e enviou a chave pela fresta.
Despediu-se do porteiro, garantindo uma última olhada para a torre de concreto que acabava de sair, sem carregar consigo coisa alguma.

Ele não entendeu a partida, sem sequer um bilhete, depois de dentro dela regozijar o prazer de entender que a possuíra. Porém, só então compreendeu que era ela quem vivia dentro dele; e fora dele, livre e só.

Um comentário:

Coração de pedra disse...

(...)

É mesmo muito dona de si pra se dividir por aí, né?