quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Aquele fumante

Tragava aquele cigarro com prazer, gozando a sensação de trazer pra si algo real, ainda que não palpável. Misturava-se à fumaça por se deixar tocar e tocava aquela porção de tabaco nos lábios ora levemente, ora ferozmente.
Sentia-se melhor desde o acendimento. O barulho do fósforo queimando, a sutileza do fogo, o assopro do vento apagando a chama, a insistência em foguear um outro palito, todo aquele ritual provocava ainda mais excitação.
Ah, a primeira tragada!
Não se previa o fim do cigarro. Saboreava cada parte como se pudesse distinguir e mensurar cada ingrediente nocivo e tranquilizante.
O modo como cruzava as pernas enquanto fumava lhe conferia um ar de poder e uma graça. Era quase um rei, coroado de fumaça.
Se muito ou nada pensava, não tem importância. Fumava. Tudo aquilo que adentrava permanecia por alguns instantes em seu corpo, e como era bom se sentir corroído, e como era bom se sentir corrosivo ao expelir o que ali não podia ficar.
As cinzas se espalhavam por qualquer lugar por sua insignificância. Mal sabia quem fumava que eram marcas mais-que-significantes.
No fim, sem que a chama alcançasse o filtro, no chão mesmo, ignora o toco daquilo que consumiu ao precisar.
Havia matado a vontade. Decerto e logo, ela iria voltar.

Uma homenagem a Evelon Oliveira.


Chama e Fumo

Amor - chama, e, depois, fumaça...
Medita no que vais fazer:
O fumo vem, a chama passa...

Gozo cruel, ventura escassa,
Dono do meu e do teu ser,
Amor - chama, e, depois, fumaça...

Tanto ele queima! e, por desgraça,
Queimado o que melhor houver,
O fumo vem, a chama passa...

Paixão puríssima ou devassa,
Triste ou feliz, pena ou prazer,
Amor - chama, e, depois, fumaça...

A cada par que a aurora enlaça,
Como é pungente o entardecer!
O fumo vem, a chama passa...

Antes, todo ele é gosto e graça.
Amor, fogueira linda a arder!
Amor - chama, e, depois, fumaça...

Porquanto, mal se satisfaça
(Como te poderei dizer?...),
O fumo vem, a chama passa...

A chama queima. O fumo embaça.
Tão triste que é! Mas... tem de ser...
Amor?... - chama, e, depois, fumaça:
O fumo vem, a chama passa...

Manuel Bandeira

Um comentário:

Anônimo disse...

Meu coração lá de longe
faz sinal que quer voltar.
Já no peito trago em bronze:
Não tem vaga nem lugar.
Pra que me serve um negócio
que não cessa de bater?
Mais parece um relógio
que acaba de enlouquecer.
Pra que é que eu quero quem chora,
se estou tão bem assim,
e o vazio que vai lá fora
cai macio dentro de mim.
[Leminski]