domingo, 17 de agosto de 2008

Devoradora de almas*

O mundo é grande...
... e cabe no breve espaço de beijar.
Carlos Drummond de Andrade

Não tendo vivido histórias infantis e mirabolantes quando a idade lhe proporcionava todos os meios, aquela mulher, depois de lamentações e tentativas frustradas de contradizer sua natureza séria e ranzinza, fez-se feiticeira.

Desenvolveu o poder comum da sucção de almas, fazendo-se mestra sem se deixar ser percebida. Junto com sua natureza que não se pode dizer precoce, mas simplesmente e desde sempre madura, estavam ali todos os efeitos de poderes naturais dos humanos que só os mais sensíveis não deixam atrofiar.
Tanto por sua natureza como por escolha, jamais soube na prática o prazer de cada idade. Bastou a ela que analisasse o comportamento humano rechaçando posturas e posições que qualquer um - tipo que não se insere - poderia/gostaria de estar.
Nunca foi seu propósito ser diferente, talvez pela crença de ser insanidade negar que a diversidade é mais-que-natural, sendo mesmo regra universal. Guiou-se pela simplicidade sem parâmetros absolutos. Fez-se só, sem esquecer e aproveitando das divinas e diabólicas influências das experiências que não pôde nem quis deixar de viver. Ainda assim, poderia ter sido eremita, tendo todo o talento para isso.
Quando o que possuía em si e ao seu redor diminuiu a frequência das rotações aleatórias e dinâmicas, elaborou, por alquimia, a fórmula de um seu elixir capaz de curar, fortalecer e rejuvenescer o corpo humano (semelhanças com a Pedra Filosofal é boa e mera coincidência). Aquilo que antes causava vertigem ao circundar-lhe, agora a iluminava.
Com dotes instintivos, criou substância atrativa para o fim a que parte de sua existência se destinava. Faltavam apenas alguns ingredientes: a graciosidade espontânea e a espontaneidade graciosa da juventude.
De repente, esporadicamente, passou a sugar pequenas doses de almas de todas as idades - só o acaso, muito favorável, lhe concedia o melhor viço dos mais novos. Nada assustador ou egoísta, muito menos fundamentado em pura ambição, já que fornecia em troca a segurança e a paz de sua natureza já descrita.
A feiticeira era uma devoradora de almas. Melhor do que se sentir jovem, era sentir sua alma desprendendo-se do contorno corporal para ajustar-se perfeitamente com aquilo que estava a somar. Para isso, só os lábios bastavam - emboram não fossem suficientes.

*verídico

2 comentários:

Anônimo disse...

Olha como a chuva cai e molha a folha aqui na telha.
Faz um som assim, um barulhinho bom.
Água nova, vida veio ver-te, voa passarinho.
No teu canto canta antiga cantiga.
(Chuva no Brejo - Marisa Monte)

Jefferson disse...

devora-me.